sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Segundo dia do Seminário: Pavel Bassinski

Tchertkov, Sonia, direitos, propriedade e testamentos: Pavel Bassinski relata a saga de Tolstói para se livrar dos compromissos com a “herança”

Pavel Bassinski (Instituto Gorki), palestrante, e Aurora Fornoni Bernardini (USP), mediadora

Platéia: no detalhe Igor Volguin e Elena Vássina

Na segunda noite do Seminário Internacional O Legado de Lev Tolstói para o século XXI, recebemos o professor, pesquisador e escritor russo Pavel Bassinski, que fez uma minuciosa exposição acerca dos últimos anos da vida de Tolstói, quando ele se viu às voltas com as exigências de Sonia e Tchertkov, seu devotado (e encrenqueiro) discípulo, para que ele deixasse um testamento válido relativo a seu legado literário.

A princípio, Bassinski falou sobre a extrema dificuldade de Tolstói  para lidar com suas propriedades. Estas seriam de duas espécies: as de teor concreto – ou seja, as terras; e as concernentes às suas idéias – ou seja, suas obras.  Das primeiras ele já havia se livrado em 1882 quando dividiu  as terras entre os membros da família e ficara, para o seu contentamento, sem nada. Mas com relação à partilha da outra propriedade, a dos trabalhos escritos, cujo valor compreenderia hoje 100 milhões de dólares, ele teria mais  problemas.

Houve, segundo Bassinski, sete variantes desse testamento. Muitas dessas variantes, contudo, eram simples anotações no diário que Tolstói, ingênuo com relação às questões jurídicas, julgava ter validade real. Na primeira anotação, inspirado em Nikolai Leskov, ele expressou seu desejo de ser enterrado como pessoa pobre e simples, quase como indigente, dispensando cerimônias de qualquer espécie. Nesse sentido, já pedia que seus herdeiros recusassem todos os direitos sobre suas obras. Para o autor, era terrível pensar que suas obras poderiam ser vendidas, envolvendo negociatas de caráter financeiro. Tolstói também acreditava que se publicasse sua vontade nos jornais, esta, por sua vez, teria força jurídica, o que era uma falácia.

Quando em 1901 o escritor quase morreu na Criméia, a necessidade de elaborar um testamento válido se tornou premente, especialmente para o sagaz Tchertkov - pontua Bassinski. Da Inglaterra, o discípulo enviou um questionário a Tolstói que, se respondido afirmativamente, serviria como o segundo testamento. O intuito era assegurar que por meio da manobra Tchertkov tivesse direito sobre toda herança literária do autor, inclusive sobre o que Tolstói acreditava pertencer à família – ou seja, sua obra precoce, o material pré-conversão.

Tal assunto, na verdade, era extremamente desagradável a Tolstói, que além de achá-lo insignificante, sabia que aquele “compromisso”, aquela “obrigação”, aqueles documentos por ele assinados, poderiam causar o mal, desencadeando conflitos. Pediu, portanto, que Tchertkov os queimasse.

O terceiro testamento foi ditado por Tolstói à filha Aleksandra – e neste ele expressou a vontade de que toda sua obra passasse ao “domínio público” após sua morte. Os erros jurídicos de Tolstói, entretanto, residiam no fato, por exemplo, dele “pedir” em vez de “ordenar” ou no desejo de legar sua obra ao povo – o que na época era impossível. Ou seja, alguém ou alguma instituição precisaria se responsabilizar por ela. Em 1909, Sofia já gozava de um debilitante estado demencial, achando que Tchertkov e Sacha iriam raptar seu marido. No mesmo ano, para impedir uma viagem deles a Estocolmo, Sofia tenta se matar e, de lambuja, enquadrar Tchertkov judicialmente, ainda que não possuísse provas concretas para tanto.

Nas anotações em seu Diário, Tolstói não mencionava o testamento e já manifestava a vontade de fugir para o exterior sozinho. Tchertkov estava sempre a seu encalço. Em setembro de 1909, Tchertkov e sua equipe conseguem fazer com que Tolstói assine um testamento, mas o ancião se sente angustiado por ter de esconder isso da família.  O "problema" não o deixava em paz, pois, em função de erros jurídicos, outras variantes seriam elaboradas. Enquanto Sofia enlouquecia intuindo que estava sendo traída, Tchertkov se mostrava cada vez mais desumano com a família de Tolstói, o que o escritor jamais percebeu, tal sua confiança no seguidor. Por Sonia, Tolstói sentia ora pena ora amor ora pavor. Como mentir era algo impossível e abominável para ele, só lhe restava escapar daquele cenário conflituoso – e foi o que ele fez. Partiu de Iásnaia Poliana numa madrugada fria "com apenas 50 rublos no bolso" - revela Bassinski, de forma conclusiva, sobre aquele admirável homem avesso a bens e propriedades. 


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