quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A nova geração da tradução (I)


Por ocasião do Seminário O Legado de Lev Tolstói para o século XXI, fomos conversar com as jovens tradutoras Graziela Schneider e Natalia Quintero, ambas integrantes do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa da USP e duas craques - e "mestres" ou "doutorandas" - no assunto. Recentemente, as duas participaram da tradução de Os últimos dias, publicação da Penguin-Companhia. O compêndio traz trechos dos derradeiros escritos de Tolstói - notadamente os mais inflamados no que tange à religião -, como Uma confissão ou O reino de Deus está em vós, além de contos, artigos, cartas e conteúdo pinçado de seu afamado Diário. A seleção e introdução é de Jay Parini - um literato aficcionado, por sinal, pelos momentos finais da vida e obra de Tolstói (que são, de fato, um capítulo à parte, como Parini mostraria no romance A Ultima Estação); e a coordenação editorial ficou a cargo de Elena Vássina, professora da USP e principal organizadora do Seminário - do qual Graziela e Natalia serão meras espectadoras.

Graziela, sabemos que você é especialista em Nabókov, mas também que já se debruçou sobre a tradução de textos do Tolstói. Quais são eles e como foi esse processo de tradução?

Na graduação, tive um primeiro contato com a tradução de alguns contos de Tolstói, dos chamados “contos para o povo”, e lembro-me que o que mais me marcou foram as descrições preciosas e exuberantes da natureza, os contrastes, a poesia e a dureza, a sutileza e a intensidade.
Realizei a primeira tradução de Tolstói com Elena Vássina, da peça “Cadáver Vivo”. Foi uma experiência incrível por vários motivos. Primeiro, a oportunidade de adentrar as profundezas do texto tolstoiano em todas as suas camadas de signos, a sublimidade, a força poética.
Além disso, por ser um texto dramático, traz particularidades muito ímpares. Trata-se de uma linguagem completamente distinta, com uma entonação, um ritmo muito específicos. Temos que manter um olho na confecção da obra, outro no estilo, um no leitor, outro na imanente encenação... não é só que tem de “fluir”, mas, acima de tudo, não pode ser aquele texto forçoso, preso, inanimado.
Por último, sempre fui a favor de trabalhar o texto a quatro olhos, mãos, sentidos... isso permite pontos de vista múltiplos, debate, reflexão, lapidações, e enriquece muito o processo e o fruto... esses encontros e diálogos culminaram com o cotejo comme il faut, líamos o texto russo em voz alta, a tradução em voz alta...
Traduzi recentemente algumas cartas, que fazem parte dos escritos tolstoianos tardios, com um grupo de outras tradutoras, e esse retorno ao escritor, e, ao mesmo tempo, a experiência de um novo Tolstói para mim, o Tosltói memorioso, o teor filosófico, a simplicidade autêntica de suas ideias e ideais, foi outra vez extraordinária...
No momento estou rematando um conto de Tostói, mas é surpresa...

Como você vê a entrada da literatura russa no Brasil? Ainda há muito a ser feito para divulgá-la?

A entrada da literatura russa no Brasil é um processo contínuo...
Costumo “decompor” os tradutores do russo – (trans)portadores da “mensagem” (Texto) da Literatura Russa – em “gerações”... apesar de sua importância histórica no percurso da tradução do russo para o português brasileiro, não vem ao caso comentar traduções indiretas (que, por sinal, continuam acontecendo, por incrível que pareça...)... nosso grande e sempre mestre, iniciador, Bóris Schnaiderman segue nos inspirando e ensinando; no Brasil, existe uma literatura russa antes de Bóris e uma depois: não seria exagero parafrasear Dostoiévski (“Todos nós viemos do Capote de Gógol”) e dizer que “todos nós viemos do trabalho de Bóris”... Nesse mesmo momento Tatiana Belinky também nos brinda com traduções de escritores russos; então temos Paulo Bezerra, Aurora Fornoni Bernardini, Homero Freitas de Andrade, Rubens Figueiredo, Arlete Cavaliere, Noé Silvia, entre outros... que também representam toda uma época de desbravamento; e já há algum tempo surge e se consolida um grupo muito significativo de tradutores como Fátima Bianchi, Denise Regina de Sales, Nivaldo dos Santos, Moissei Mountian, Lucas Simone etc., que tem feito um importante trabalho de pesquisa e apresentação de, digamos, “novos” textos da literatura russa aos leitores brasileiros, além de continuarem a traduzir os cânones. Não posso deixar de mencionar, também, que o círculo de editoras que não apenas dá espaço, mas busca publicar literatura russa está cada vez maior e mais cuidadoso, com belíssimos trabalhos da 34, Cosac & Naify, e outras tantas editoras, como a Globo, a Martins, a Amarylis etc. Hoje várias editoras estão ávidas por literatura russa! Além disso, a Kalinka, editora especializada em literatura de língua russa e do leste europeu tem um trabalho muito esmerado.
Entretanto, no Brasil ainda temos uma visão um tanto restrita em relação à tradução de literaturas “minoritarizadas”; primeiro, porque os textos têm de ser bem conhecidos, já traduzidos para o inglês e/ou francês, dignos de condecorações (prêmios)... segundo, porque há uma relutância em abrir possibilidades de várias traduções de uma mesma obra, em geral por questões de direitos e, assim, uma tendência à exclusividade, o que pode ser uma pena. Várias traduções de uma mesma obra aumentam o espírito crítico, e, portanto, a excelência das traduções, criam diálogos... abrem todo um universo do mundo da língua, da literatura, da tradução.
Nesse sentido, é preciso tomar muito cuidado com “charlatães” e é essencial que se atente para o apuro, a seriedade, e, principalmente, a responsabilidade dos tradutores. É muito importante que haja uma revisão específica, não apenas do português, mas das transposições, para que se percam cada vez menos alusões, entrelinhas... é preciso, de uma vez por todas, considerar o livro um projeto como um todo (escritura, escrito, leitura, tradução, revisão/preparação, projeto gráfico/arte, capa...) e não a tradução como fato isolado e esquecido. A responsabilidade e o dever me lembram de direitos... ainda me espanto quando leio artigos de revistas e jornais que não mencionam o tradutor; e me surpreende que temos de nos contentar com elogios à obra para nos sentirmos lidos, para fingirmos que, de alguma forma, nosso trabalho está sendo contemplado. Precisamos falar disso, não só em nossas rodas de escritores, professores, pesquisadores e tradutores, mas chamar a atenção para o respeito e valorização do tradutor... o tradutor tem deveres e direitos!
Acredito que, apesar dos booms de traduções e de interesse por literatura russa no Brasil, o caminho apenas começou e é infinito a olhos nus. Gosto muito de uma expressão que uma amiga usa: “a literatura russa é um bolo enorme e muito gostoso. Tem fatias para todo mundo”...


 
Natália, como foi traduzir os Diários de Juventude de Tolstói?

Com certeza, uma experiência única. Foi minha primeira tradução do russo, o que significou enfrentar muitas dificuldades, um trabalho muito vagaroso e muito exigente. Ao mesmo tempo, foi um aprendizado de vida pela aproximação a essa faceta particular da vida e da obra de Tolstói, e um motor do crescimento profissional, tanto pelo esforço individual, como pelo trabalho conjunto com meu orientador de mestrado, Prof. Noé Silva, a quem sou profundamente grata, e com muitas outras pessoas invisíveis que, aqui ou no outro lado do planeta, estiveram sempre dispostas a tirar uma dúvida e, com isso, alargaram minha compreensão da cultura, da história e da língua russas. Quero com tudo isso dizer que, ao olhar para trás, mesmo consciente dos desvelos e da insatisfação frequente diante de palavras e passagens que não conseguimos verter apropriadamente, prevalece um sentimento de prazer e de afeto profundo pela obra traduzida e pelo ato de traduzir. Talvez reveja essa tradução e, com os anos e a experiência acumulada, veja nela mais defeitos que virtudes, mas penso que ainda assim, ela terá um valor enorme para mim por tudo o que me ensinou e ainda pode me ensinar. É uma obra da qual não me fastio, não só por ser meu objeto de estudo.
 
Você já traduziu outros textos do autor. Pretende continuar a trabalhar com ele? Quais são seus projetos para o futuro? Como é ler Tolstói no original?

Traduzi alguns outros textos de Tolstói, em sua maioria, de não-ficção. Foi outro trabalho extremamente interessante porque me deu a oportunidade de ver o pensamento tolstoiano em conjunto - como ele se desenvolveu e que coisas permaneceram como essenciais para Tolstói quase até o fim da sua vida. O que era para mim apenas uma impressão, se tornou uma convicção. A coerência entre vida e obra é mais sólida do que se pode pensar ao observar aspectos externos da vida de Tolstói. No curto prazo me interessa trabalhar ainda com parte desse corpus que constituem os textos não ficcionais de Tolstói e ver as possíveis relações entre eles e as obras literárias. Por esse caminho, gostaria também de considerar alguns aspectos formais dos textos não ficcionais. É interessante pensar que há neles certa elaboração artística, mesmo não sendo textos ficcionais. Alguns críticos veem uma linha de enredo nos diários de Tolstói. Pessoalmente, sinto um certo ritmo na prosa tolstoiana. Isso é um campo completamente inexplorado por mim, mas que me impressionou fortemente durante a leitura em russo. O trabalho com Tolstói pode ser infinito. Contudo, gostaria muito de trabalhar com outros autores. Por exemplo, Mikhail Bulgákov foi, por assim dizer, minha primeira paixão russa. Por causa dele comecei a estudar a língua russa e acabei vindo para o Brasil estudar literatura russa.
 
Quais são as suas expectativas para o seminário?

Tenho enorme vontade de ouvir as palestras de todos os convidados, isso é claro, mas também encontrar mais pessoas que se interessam por Tolstói. Saber sobre as pesquisas que estão em desenvolvimento e convidar pessoas para que se aproximem do universo tolstoiano.


Com seleção e introdução de Jay Parini e coordenação editorial de Elena Vássina, Os Últimos dias conta com traduções de Anastassia Bytsenko, Belkiss J. Rabello, Denise Regina Sales, Graziela Schneider e Natalia Quintero.

Nenhum comentário: